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O Autor Não Está Morto

 

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O autor é por definição o fazedor de literatura ou de textos literários, o cânone, palavra que muitos repudiam pela sua conotação conservadora e pelo “pó” que foi acumulando nos últimos anos pela falta de uso, o conjunto de autores que pela qualidade, força interventora e reconhecimento público se convencionou serem lidos, estudados e analisados no decurso da vida escolar e universitária. Esta considerou-se a base do estudo da língua e cultura portuguesas durante décadas, diria até centenas de anos, dada a antiguidade da instituição universitária no nosso país.

Detalhe de São Jerónimo da autoria de Caravaggio, c. 1605-1606

Hoje em dia, sem aparente justificação ou explicação, as directrizes emanadas do Ministério da Educação contrariam de várias formas aquilo que professores, intelectuais, escritores, alunos, população em geral tiveram como certeza, tiveram como verdade durante sucessivas gerações: a de que a aprendizagem da língua portuguesa, ou seja, o domínio da expressão escrita e falada na nossa língua implica o partir da análise dos exemplos dados à luz pelos melhores, entenda-se os melhores autores, os melhores livros, os melhores pensadores, os melhores fazedores de literatura. Certamente que o português pode-se aprender a partir da leitura de mails, mensagens, folhetos, calendários, instruções, cartas, disso ninguém duvida, o que ponho em causa é que esse tipo de matéria-prima conduza efectivamente os alunos ao domínio de conceitos como o do relacionamento de ideias, o do comentário, o da argumentação e o da análise. O mesmo sucede quando dos programas de português do ensino básico se apaga gradualmente o estudo do contexto da obra, das referências históricas subjacentes à mesma, do universo ideológico do autor e da época. O pensamento constitui a força motriz da língua e esse só se ensina dando aos outros motivos para pensar, problemas, incertezas, ideias novas. A título comparativo, atente-se, por exemplo, na hipótese de um aprendiz de sapateiro compreender a elaborada técnica da produção de calçado a partir da repetição exaustiva do fabrico de chinelas. A percentagem de sucesso seria, claramente, diminuta. O mesmo sucede aos nossos alunos, cada vez que lhes sonegamos a hipótese de ir mais além, de pensar mais e melhor, reiterando a ideia de que o autor, o contexto da escrita, a cultura literária estão mortos e enterrados, que o que interessa agora é o ensino funcional da língua (o ensino funcional da língua?), que o resto é apenas pertença dos intelectuais e de uns tantos chatos que ainda se atrevem a ler, pensar e opinar. Pois é bom ser chato e ainda melhor chato e intelectual, e um professor chato e intelectual é do melhor que há, porque vai interferir no comodismo ideológico dos seus alunos, vai abanar as suas certezas, vai obrigá-los a que se confrontem com textos, ideias, escritores e problemas que não se encontram habitualmente na televisão, na internet, nos jogos de computadores, nas novelas, isso já eles conhecem integral e cabalmente, não estão necessitados desses exemplos, mas antes de outros, mais difíceis (pois é, aprender custa!), mais dispendiosos em termos temporais, porém mais aliciantes.

Com o tempo, os livros, os autores vão-se tornando o estrume de uma cabeça pensante, num longo e demorado processo de “compostagem” de ideias. Dirão muitos que a escola deve acompanhar os tempos, pois deve, incorporando no cânone novos autores, novos no sentido etário (porque não um José Luís Peixoto, um Gonçalo Tavares, um João Tordo) e no sentido histórico e cultural do termo (autores lusófonos, autores de minorias étnicas, autores historicamente desprezados pelas suas escolhas ideológicas), nunca contornando os desafios que se nos colocam as boas obras através do apagamento gradual das dificuldades inerentes ao seu estudo.

Exigir menos é saber menos, e saber menos traduz-se demasiadas vezes num pensamento pobre, acomodatício e desinteressante. Assim não preparamos os jovens para a vida, simplesmente os entregamos ao mundo sem ferramentas que lhes permitam forjar o seu próprio caminho, seguros do seu passo, inteiros de corpo e de mente. Eis a diferença acabada entre homem e boneco: só um deles é que é o manuseador, o outro limita-se a existir.

Recomendações de leitura a propósito deste artigo. Leiam e deliciem-se.

Carla Escarduça

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1 comentário:

  1. Excelente entrada! Muito bom mesmo. Eu partilho da mesma ideia geral, de abrir o leque. Só discordo de uma palavra (que outra?) usada aqui: "Com o tempo, os livros, os autores vão-se tornando o [i]estrume[/i] de uma cabeça pensante". Mas só porque me remete imediatamente à imagem pictórica! De qualquer das maneiras, sim! Este ensino está computorizado, uniformizado, estandardizado, demoniacamente [b]industrializado[/b]!

    Bem haja.

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