A minha viagem da Horta ao Porto Santo - III
De pé e bem seguro, quis-me observador descomprometido ante o iminente embate entre as águas do porto e as do canal. Aliás, diversos motivos – tais como a ilha do Pico a aproximar-se, o canal a estender-se muito para além dos limites a que me habituara inclusive nos dias límpidos, a cidade da Horta a afastar-se – solicitavam a minha atenção, enquanto os cinco dias de mar alto que tinha pela frente aconselhavam a não me deixar impressionar ao primeiro imprevisto.
Os pressentimentos, intuídos nos longos momentos passados a olhar o mar e a passear nas suas margens, orientavam-me. Agir como se aquele fosse de há muito o meu habitat natural. Comportar-me com a naturalidade de um autóctone de modo que a suspeita de não ser dali não se insinuasse. Mas quando vi a onda a erguer-se do nada e avançar contra a proa do barco, percebi de imediato que nem aquele local nem a minha posição eram os mais adequados…, ao mesmo tempo que insidiosas dúvidas acerca da robustez do veleiro me assaltavam.
Rebatendo-as, o Windlise superou a onda com admirável desenvoltura.
A apreensão e o nervosismo ainda lutavam no meu íntimo. Todavia, o mais reconfortante foi descobrir que o sentimento de segurança não procedia da forma como o veleiro se comportara, nem do local onde me refugiara, mas da atitude tranquila que testemunhei nos meus companheiros de viagem.
Para eles, alcançar as águas do canal apenas significara que a altura de içar a vela grande tinha chegado. Só que ao levarem a cabo uma tarefa tão corriqueira me proporcionaram a vibrante sensação de estar perante uma revoada de pássaros a soltar-se na manhã que, de tão cinzenta, realçava ainda mais a brancura das suas asas.
Foi uma imagem bonita e bem real, ao ponto de fazer com que um momento já celebrado ganhasse – despojado dos adereços imaginários – uma outra nitidez: afinal, era ali e naquele instante que a viagem começava.
A terra continuava ainda muito próxima, é verdade. Se a cidade da Horta se distanciava e começava a esconder-se por detrás do paredão do porto, os contornos dos montes da Guia e Queimado, bem como os do sopé do Pico, a bombordo, estavam mais visíveis. Contudo, naquele preciso instante é que se tornou claro que já não havia volta a dar nem forma de retroceder.
Com o princípio de realidade a restaurar a minha sensibilidade, logo acorri a Astrid a puxar o cabo que alteava a vela da proa.
Era a oportunidade de me reabilitar aos meus próprios olhos. Mas depressa constatei que a desejada ajuda não compensava o atrapalho causado. Não se tratava apenas da minha inexperiência. Ela era mais lesta e tinha mais força do que eu!...
As surpresas contudo ainda não tinham terminado.
Orientadas as velas, o Dieter desligou o motor. Em mar aberto, este era o procedimento natural a bordo de um veleiro. Apesar de desconhecer o momento ideal, haveria de ocorrer. Não contava era com o silêncio que se seguiu. Por breves instantes, foi mais percetível do que quaisquer sons, embora o mais inesperado tenha sido perceber, pouco depois, como aquele silêncio fora condição para outra surpresa, mas de diferente sortilégio: doravante estaríamos entregues aos elementos!...
Texto de António Perdigão
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