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Eu, a cabra e a escola–homenagem à Dª Alice, professora

imageMorava no caminho que os outros percorriam rumo à escola. Mera casualidade sem importância, dirão uns; e depois? – perguntarão outros; que inferno! – exclamava a minha mãe, que, invariavelmente, todos os dias, por volta das 8h da manhã , lá tinha de arranjar estratagemas para me entreter dentro de casa, e desta forma evitar que eu avistasse aqueles que, por terem mais um ano do que eu, passavam, de mala às costas, a caminho da escola. Foram sempre vãs estas tentativas, pois mesmo que não os visse passar, sabia que eles estavam a passar, o que provocava uma reação deveras assustadora em quem assistia àquele espetáculo todas as manhãs, lá em casa: começava por uma ingénua pergunta:
- Por que é que eu não me deixa ir à escola?
Mal se ouvia e tudo à volta estremecia, ainda mais a minha mãe, que sabia que eu não aceitava a resposta que tinha para me dar:
- Oh filha, tua ainda és pequenina, para o próximo ano, já vais com eles!
E como já se previa, começava aqui o horror e a tragédia, um ano para uma criança de 5, é a eternidade disfarçada. Começava, então, por me tremer levemente o queixo, primeiro sinal exterior de uma mágoa profunda; depois os meus pequenos olhos ficavam levemente marejados, para, a seguir, chegar a apoteose: o abrir muito a boca, projetar a voz com toda a força que tem uma rapariguinha de cinco anos e debulhar-me em lágrimas, num berreiro inconsolável. Outras vezes, quando me era dado sair para os ver passar, cortava o coração aquele meu olhar de tristeza profunda, a vê-los subir a vereda, em direção ao chaparro do zango e, porque o caminho fazia ali uma curva e eles saiam do meu campo de visão, a imaginar que brincadeiras estariam a fazer chapada acima, rumo à escola, onde os esperava a Dª Alice e as suas dezenas de piriquitos.
Tornaram-se tão famosas as minhas birras matinais que, conta-se, algumas vizinhas mais mandrionas, nem precisavam de despertador, pois eu tocava sempre à mesma hora. Até ao fim de semana. Nesses dias, não era porque os via passar, era porque não passavam, o que me dava uma sensação de vazio interior, e fazia com que me tremesse o queixo, ficasse com os olhos marejados, atirasse, em vez de por que é que eu não me deixa ir à escola?, um por que é que hoje eles não vão à escola? – seguia-se a resposta: - Hoje não é dia de escola – e vinha imediatamente a goela aberta e a projeção da minha voz infernal.
Assim passei os três primeiros meses dos meus 5 anos. Em Março, a casa que os meus pais estavam a construir ficou pronta e fomos para lá, para desgosto da anterior vizinhança, como deverão calcular, pois com a minha ausência, acabavam-se os espetáculos matinais gratuitos.
A casa nova fica de um dos lados da rua, que tem, do outro lado, imagine-se: a escola onde andavam todos aqueles com quem costumava brincar, e que, por terem mais um ano do que eu, já eram crescidos...
Tudo mudou na minha vida em cerca de duas semanas: o tempo que a vizinhança e a professora Alice aguentaram as minhas monumentais expressões de vazio interior, por falta da escola. Ao fim desse tempo, a professora Alice foi bater à porta. Mal a vi, percebi que eu tinha feito tudo certo. Trazia um pequeno saco: lá dentro, um caderno A4 azul forte, com um panda desenhado. As folhas todas tinham o mesmo panda no canto inferior direito e as linhas eram azuis. No saco estavam também um lápis de carvão, uma borracha e um conjunto seis lápis de cor. A professora trazia a solução! Permitam-me a divagação: os professores, digo eu hoje, por conhecimento de causa, trazem sempre soluções, à exceção das que que não chegam a ser, sendo-o, no entanto, no seu coração.
Disse, então, a Dª Alice à minha mãe:
- D.ª Angélica, a Tonica quer mesmo ir para a escola, mas é muito pequenina. Enquanto os outros estão na aula, ela que vá fazendo aqui uns desenhos nestes cadernos, ou umas letrinhas, e quando vier o intervalo, deixe-a ir ao recreio, para ela não se sentir tão triste.
Foi bonito o gesto, mas lá está, esta solução existiu apenas no coração da Dª Alice, já que eu, três ou quatro dias a fazer desenhos e letras, comecei a cansar-me e voltei a, novamente, a dar conta de umas cócegas no sentir, aquelas que os vazios interiores provocam...
A Dª Alice não se deixou vencer, ou então já vencida, foi lá a casa novamente, e propôs-me um desafio: se eu conseguisse fazer um desenho muito, muito bonito e escrever o meu primeiro nome, ela deixava-me ir às aulas com os meus companheiros.
Percebi que não podia falhar: nessa tarde, após a aula dos meus companheiros, não fui brincar com eles. A minha mãe estendeu uma manta no chão, eu pus-me de rabo para o ar e, com toda a minúcia, fiz, oficialmente, o meu primeiro desenho e escrevi, pela primeira vez o meu nome, consciente de que conseguir fazê-lo era a certeza de passar a existir como os outros.
Mas não fiz tudo assim, de pé p’ra mão como aqui relato. Levei algum tempo a decidir o que desenhar, finalmente, quando tomo essa decisão, pus mãos à obra e, num curto espaço de tempo, tinha feito o mais belo desenho que os meus olhos alguma vez haviam visto: a cabra mocha que o meu pai tinha na altura, animal manso e simpático de que eu gostava tanto. Toda a gente percebeu que era uma cabra, só ninguém conseguiu entender a razão de a ter pintado em duas metades: do meio para a cabeça, de cor de rosa; do meio para o rabo, lilás. Expliquei que tinha optado por aquelas cores, por achar que combinavam bem. Por baixo escrevi: Antónia Ana Rosado Mancha. Não com a perfeição que aqui se mostra, um pouco mais tremido, é certo, mas estava lá todo o meu nome e não havia forma de me manterem aprisionada à condição que até então me haviam dado.
Hoje, ao olhar para esse meu primeiro desenho, não acho muito abonatório o meu nome aparecer como uma espécie de legenda de uma cabra, mas na altura recordo-me de ter sentido uma ponta de orgulhozinho.

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Profª. Antónia Mancha
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Escola Primária de Orvalhos. Há muito encerrada.

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