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A minha viagem da Horta ao Porto Santo - IV

mar

Uma vez mais a discrepância entre o que imaginara e o que experimentava revelou-se indisfarçável. O estremecimento que sobreveio à consciencialização súbita de estar à mercê dos elementos, ademais numa manhã como aquela e numa nave tão pequena, diferenciava-se do sortilégio que sempre associara à imagem de um veleiro irrompendo mar afora. A alternativa era familiarizar-me com a realidade à volta, sentir-lhe a pulsação, na esperança de lhe captar as graças.

Mais do que a cidade da Horta ou o Monte da Guia, ao lado, já era a ilha do Faial a afastar-se. A travessia do canal decorrera sem qualquer sobressalto, apercebi-me com satisfação. Considerando as notícias relativas ao feitio imprevisível das suas águas, constituía um bom augúrio.

O horizonte deslocava-se à medida do nosso lento avanço e por isso, mesmo que a manhã não estivesse tão soturna e nublada, já não avistaríamos a ilha de S. Jorge. O Pico, engrossando, qual tronco descomunal, impedi-lo-ia de qualquer modo, enquanto a folhagem de nuvens densas e baixas deixava ver apenas o sopé e as raízes de lava.

A visão das ondas desfazendo-se em espuma contra as rochas das Lajes do Pico é que perturbou este levantamento apaziguador. A vulnerabilidade da embarcação ante o fragor com que as ondas desabavam contra as rochas desafiadoras ressurgiu, se bem que momentaneamente. Ao contrário do que sentira ao ver o mar a crescer, ainda não tínhamos deixado a área portuária, e ao antever há pouco o veleiro balouçando ao sabor dos elementos e sem terra à vista, era mais seguro passar ao largo do que nas imediações da costa. Esta constatação não só teve repercussões na minha postura como proporcionou maior atenção às palavras do Dieter.

Não se tratava de a ajustar, disse-me ele a propósito do safanão que sacudiu a vela grande como se fosse um lençol antes de ser posto a secar. O Pico é que barrava a passagem do vento, tornando-o irregular e fazendo com que a velocidade do veleiro que nunca fora muita abrandasse ainda mais.

Afinal, a entrega aos elementos não era totalmente cega! Depois da segurança que sentira ao constatar o à-vontade com que os meus companheiros se moviam e levavam a cabo as manobras a bordo, podia esconjurar os receios que porventura teimassem em melindrar a incursão marítima que tanto almejara. Só que todo este processo de apaziguamento e de descontração foi abruptamente interrompido por uma surda e insidiosa amotinação.

Com o olhar afastado o mais longe possível, procurei ignorar as reclamações que pareciam vir do estômago, essa criança mimada e incansável a chamar a atenção. Mal esboçara esta estratégia, já estava a levantar-me desassossegado. Sem saber como me livrar do súbito mal-estar, desci para o interior do barco. Tal como intentei comigo, desejava por certo manter os meus companheiros alheados do crescente enjoo com que me via a braços. Cada vez mais aflito perante a iminente catástrofe, o melhor era prevenir-me com um saco de plástico.

Perguntei ao Achim onde poderia encontrar um. Na minha pretensa lucidez ou na ausência dela, queria poupá-los à visão do que o meu estômago se preparava para rejeitar. Mas antes que o Achim compreendesse o meu pedido ou esclarecesse a dúvida ‘pra que raio quer ele um saco’ já o meu estômago roncava a sua revolta e de tal forma sonora que todos a bordo se aperceberam do que se tratava.

Debruçado da amurada, a conselho da Astrid, iniciei de imediato o pagamento por me ter feito passar por um deles.

António da Vargem Perdigão

1 comentário:

  1. Lol marinheiro de água doce eheh :D

    Sobre o estar à mercê dos elementos, é algo com que nos deparamos nas ilhas amíude.

    Ondas de 8 - 10 metros não são raras, bem como ventos na ordem dos 90 km/h etc.. é uma espectáculo da Natureza impressionante e constante.

    Estou a gostar de ler as tuas crónicas :)
    Eduardo Gonçalves.

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