não conto
Podia contar uma história passada no recreio, ou na sala de aula, ou contar como tinha sido a prova oral daquele exame.
Podia também contar de namoros.
Ou contar das partidas que fazíamos: sempre às escondidas, sempre longe de sermos vistos nem que fosse com um sorriso malandro pendurado nos olhos, que partida que engendrassemos era combinada no maior segredo, e a execução dava-se em sossego. Nada de atropelos como daquela vez.
Podia contar, mas não conto!
O que eu poderia contar nem teria interesse!
Coisinhas como ter feito aquela conta trinta e tantas vezes numa manhã inteira, que era o que durava a prova! e em cada vez que fazia aquela abençoada divisão por dois algarismos, a menina que eu era dizia, convicta e sistemática: dois vezes dois, quatro, e vão dois! e nada batia certo, e tornava: dois vezes dois, quatro, e vão dois!
Não pode ter interesse este tipo de erro feito quando eu tinha duas tranças louras e andava ainda na segunda classe, a bata muito branca, os dedos da mão direita borrados no sítio onde já criara calo do aparo! e todas as demais meninas a deixarem a sala, a prova terminada, e eu a ficar para trás, a engolir a humilhação de mistura com as lágrimas que só chorei em casa! e de novo: dois vezes dois, quatro, e vão dois! e a voz da professora passando ao largo: então e essa conta, nunca mais se acerta?!
Eu muito menina a fazer uma prova final da segunda classe em folha de papel almaço com margem dobrada pela quarta parte, e a caneta de aparo molhada em tinteiro de loiça enfiado no buraco.
Histórias como esta não entusiasmam o leitor, ainda mais se ele nunca viu uma folha de trinta e cinco linhas em papel almaço ou um tinteiro de porcelana enfiado no buraco da carteira, repleto até às bordas de tinta azul intenso! se ele nunca soube o que era molhar o aparo com a mão tremendo, e escrever sem deixar cair um pingo sobre a folha onde fizesse uma malfadada divisão.
E porque este exemplo me parece argumento convincente, não conto!
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Texto de Maria de Fátima Santos
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