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Olhos grandes como berlindes.

clip_image002[6]Olhando para o Reino dos animais, assim de repente, salta-me à vista o Choco, Sepia officinalis (ver figura nº1), que apresenta padrões e cores fascinantes. É capaz de mimetismo (capacidade de
imitar o ambiente, para se confundir com ele), alterando as cores da pele de modo a dissimular-se no ambiente que o rodeia, de tal modo que dificilmente se distingue das rochas, troncos ou areia onde se mascara. É óbvio
Fig. 1
que, com base na capacidade pouco vulgar deste animal, se pode inferir a existência de um olho bem desenvolvido, capaz de detetar as subtis mudanças de padrão do ambiente e assim alterar o padrão da pele. Esta inferência não será abusiva, já que olhos bem desenvolvidos são característica, bem conhecida, dos cefalópodes (onde se inserem animais como o choco, polvo e a lula).

Também nós, seres humanos, funcionamos de forma geral em função da visão. Que outra razão plausível haveria para nos alindarmos, mais ou menos, face aos mais variados interesses? O mundo dos humanos não seria o mesmo sem a visão! Os poetas usariam certamente outra linguagem, pois muitos dos poemas belos perderiam o sentido num mundo de cegos. Expressões como “corpo de ébano”, “tez de marfim” ou “lábios carmim” fariam tanto sentido como assobiar a um cão surdo e esperar que nos ouvisse. Se observarmos ainda a mais ou menos vistosa plumagem das aves, as técnicas de caça, as estratégias de sobrevivência ou as paradas nupciais, não poderemos deixar de sorrir ante o pragmatismo que olha os olhos e a visão como fatores que, de um modo geral, foram determinantes para o sucesso dos animais.

Se hoje, os olhos e os olhares são mais ou menos parecidos entre os animais, nem sempre o foram. Outros olhos e outros modos de olhar e ver o mundo foram usados com sucesso durante muitos milhões de anos mas, lamentavelmente, só chegaram até hoje vestígios fósseis desses modos de ver e dessas estruturas de visão.

clip_image004A vida surgiu há muito, muito tempo atrás neste planeta, mas numa Terra consideravelmente diferente da que hoje conhecemos. As primeiras formas de vida estavam confinadas ao meio aquático, não por opção própria, mas porque o planeta apresentava condicionantes que não permitiam a sobrevivência fora de água (teores de oxigénio na atmosfera inexistentes ou baixos eram insuficientes para formar a camada de ozono que protege dos raios ultravioletas). Assim, há muitos milhões de anos, o mar tinha seres vivos muito diferentes dos atuais mas, na realidade, as relações entre eles eram basicamente
fig. 2
as mesmas de hoje, isto é, havia presas e predadores, uns escapavam outros não, um dia era da caça e o outro do caçador, e havia uns que se safavam melhor que outros… Como vos disse, nada de muito diferente dos nossos dias.Nestes mares viveram uns seres muito peculiares designados trilobites (ver figura nº2). Eram um grupo muito vasto com mais de 20000 espécies descritas (se pensarem que todos os seres humanos são da mesma espécie podem imaginar a diversidade) que se espalharam pelos mares de então e que, lamentavelmente, pelo menos para alguns, se extinguiram.

As trilobites foram um grupo de sucesso e viveram cerca de 250 Milhões de anos (de 545Ma até 250 Ma). Eram pequenos animais marinhos que podiam medir desde poucos milímetros a dezenas de centímetros (o maior exemplar conhecido é português, foi encontrado em Arouca e mede 86cm). Este grupo de animais apresentava, embora nem sempre, olhos distintos, o que nos permite inferir que viviam num mundo onde a visão era importante e a cor devia ser uma constante. As trilobites que viviam em zonas equatoriais apresentam, na generalidade, olhos desenvolvidos. Este facto, à primeira vista, pode parecer um pormenor de somenos importância, mas é crucial! Pergunto eu, em que zonas aparecem os peixes mais coloridos (não vale aquários!)? Exatamente, nas zonas equatoriais. Por outro lado, descobriram-se trilobites com olhos pouco desenvolvidos ou sem olhos. E, nem de propósito, as que viviam em ambientes lamacentos, na maioria dos casos, tinham visibilidade reduzida ou nula. Ora tudo isto faz sentido. Para que quer uma toupeira olhos se no seu mundo só há escuridão?! As toupeiras perderam os olhos porque a sua presença não era importante e a sua ausência não as tornava menos aptas. Tal como as toupeiras, algumas espécies de trilobites que habitavam ambientes lodosos e obscurecidos sofreram regressões das estruturas oculares.

O que me traz até aqui não é o facto das trilobites terem ou não terem olhos, mas sim o tipo de olhos das trilobites e a sua peculiaridade. Porquê? Porque são únicos. Não se conhece outro grupo de animais com este tipo de olhos. Por exemplo, nós, as aves, os répteis, os peixes, as moscas e até os caracóis apresentam os olhos esféricos, cheios de líquido, confinados por membranas, músculos e nervos.clip_image002As trilobites com capacidade de visão não tinham olhos, tinham “berlindes”! Isto é, as que tinham olhos tinham-nos rígidos, feitos de um mineral chamado calcite (ver figura 3). Os olhos das trilobites eram como pedras, o que demonstra que já era possível observar o verdadeiro “olhar pedrado” no Paleozóico (Era da história da Terra em que viveram as trilobites). Estes olhos podiam ter milímetros, mas também podiam ser centimétricos. Atualmente, parentes próximos (seja lá o que isto for) como, por exemplo, os insetos têm olhos “tenrinhos”,
fig. 3
construídos pela mesma cutícula que lhes reveste o corpo. Estes olhos são compostos, isto é, cada estrutura ocular é composta por “muitos olhos” que geram uma imagem resultante do somatório das imagens de cada um deles. As trilobites também apresentam olhos compostos por muitas lentes (de uma a milhares), sendo que cada lente é, geralmente, esférica e responsável pela formação de uma imagem. Imaginem agora milhares de lentes dispostas numa superfície esférica… O animal podia ter uma visão de 360º, facto absolutamente fantástico mesmo nos dias de hoje (ver figuras 4, 5 e 6). Imaginem conseguirem a qualquer instante ver tudo à vossa frente, atrás, dos lados e por cima, como se da tela de um cinema se tratasse, e conseguir mesmo ver a diferentes distâncias e calcular profundidades de campo.

 

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Trilobite Erbenochile erbenni  Fig.4) animal fossilizado.          Fig.5) Representação esquemática.


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Fig.6) Pormenor de uma das estruturas oculares.

A calcite é um mineral muito abundante na crosta terrestre, formado essencialmente por carbono e cálcio. A calcite é conhecida por evidenciar uma propriedade curiosa (ver figura nº7),clip_image002[4] isto é, quando se deixa atravessar pela luz provoca a divisão do raio de luz em dois raios (um ordinário e um extraordinário). Posto assim, o uso de empacotamentos de prismas de calcite pura (mas não muito) nos olhos das trilobites parece muito fácil, mas não é, visto que desta propriedade da calcite decorre um problema discreto mas muito importante quando se trata da formação de imagens. Sabe-se que quando a luz viaja através de lentes convexas até ao foco, os diferentes raios de luz viajam diferentes distâncias de acordo com a sua trajetória. Esta é uma questão velha para os astrónomos, que há séculos corrigem os telescópios “vesgos”. Se a isto
Fig. 7
juntarmos a capacidade refrativa da calcite, então temos uma forte probabilidade de ocorrerem aberrações devido à esfericidade, o que resultaria em imagens muito imprecisas para o animal (ver figura nº8)clip_image002[14] e, consequentemente, dificuldades de sobrevivência.

Pensa-se que cada raio atravessava uma lente de composição mineral e convergia num ponto, o foco que já teria células (orgânicas), a imagem aqui formada seria depois levada por nervos, ao cérebro, onde seria interpretada. Assim, quanto mais
Fig. 8
lentes, melhor a imagem, tal como nas fotos; nos nossos dias, quanto mais pixéis, melhor a definição. Posto isto, não surpreende a existência de alguns grupos de trilobites com milhares de prismas de calcite em cada olho.

Ao ser estudado um grupo particular de trilobites, as Phacops, descobriu-se como solucionaram o problema: cada lente apresenta uma dupla estrutura interna, ou seja, com duas camadas de diferente coeficiente refractivo (coeficiente refractivo é a resultante da variação da velocidade da luz quando esta muda de meios) combinadas. Esta estratégia corrige os problemas de focagem resultantes de lentes rígidas. Assim, primeiro depositaram esferas de magnésio a separar as lentes de calcite para evitar que os raios luminoso de uma lente passem para as lentes vizinhas, e depois impregnaram com magnésio certas áreas das lentes. Desta forma, os raios que desviam são corrigidos e atingem o foco no mesmo ponto. O Magnésio tem um raio atómico muito semelhante ao cálcio, por isto, em certas estruturas cristalinas podem substituir-se sem problemas de maior, e esta substituição permite corrigir a aberração esférica e obter imagens precisas, tão precisas que é possível tirar fotografias com estas lentes desde que, para tal, se troque a lente da máquina fotográfica por um destes “berlindes” de trilobite.clip_image002[16]

 

 

 

Fig. 9 Cortes longitudinais de diferentes organizações das lentes dos olhos das trilobites. As lentes representadas a azul, a esclera representada a castanho e as membranas córneas representadas a rosa.

 

clip_image002[18]É ainda importante referir que as trilobites efetuam várias mudas ao longo da vida, isto é, libertam o seu exoesqueleto (carapaça) e segregam um novo. As estruturas oculares também crescem e são afectadas por estas mudas. Como tal, ao longo da vida do animal tem de haver dinamismo morfológico, no sentido de evitar distorções nas imagens. Como já foi dito, nem todas as trilobites tinham visões tão extraordinárias, algumas eram mesmo cegas, como é o caso das Placoparias sp (ver fig. Nº10). O que me pergunto
Fig. 10
é: se não utilizavam a visão e tiveram sucesso e sobreviveram durante tantos milhões de anos, que outros órgãos sensoriais usavam? Que outros sentidos desenvolveram? Ah, mas esta, esta é outra história.

Autora: professora Margarida Agostinho

Andrea Freshwater - Invertebrate Paleontology. Clarkson – Invertebrate palaeontology and evolution. Richard Fortey – Trilobite! Eyewitness to evolution.

http://ventosdouniverso.blogspot.pt/2011_12_01_archive.html, http://www.trilobites.info/eyes.htm, http://www.fossnet.de/trilotschechien.php, http://www.etrilobite.com/?p=924

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