Crónicas da Valéria - Abril de 2018
Neste
capítulo decidi escrever sobre algo sobre o qual já me consciencializei há
algum tempo. É algo, para muitos, absurdo, outros nunca sequer chegam a
debruçar-se sobre o assunto, ou talvez até não tenham qualquer perceção deste.
Há pouco tempo li um livro chamado “One, no one, and one hundred thousand” (um,
ninguém e cem mil) de Luigi Pirandello. Pessoalmente, nunca fui particularmente
apaixonada pela leitura ... tal como muitas das pessoas da minha idade que
conheço. Mas houve sempre algo em literatura contemporânea que me intrigava.
Nunca gostei muito de obras velhas, pois eram “maçantes”, pelo menos a grande
maioria delas. Mas, por outro lado, interessava-me literatura contemporânea.
Interessava-me ficção realista, e interessavam-me os monólogos, os dilemas
pessoais e os mergulhos no abismo da mente humana realizados pelos
protagonistas, jovens e curiosos, dos
livros aos quais me dava ao trabalho de ler. John Green, E. Lockhart, Stephen Chbosky,
Gayle Forman. “Um, ninguém e cem mil” foi um livro que encontrei por
acaso, num blogue pessoal, e o título pareceu-me esquisito, mas no bom sentido.
“ O romance começa com ele [o autor] olhando para o espelho de manhã,
quando percebe algo estranho sobre seu nariz: ao pressionar a sua narina, ele
sente dor. O ato de olhar no espelho para si mesmo, quebra a perceção que ele
tem de si mesmo. E ele vai percebendo que sua imagem é construída pelo o que os
outros acham dele. E o que outros acham dele, segundo Moscarda, não é ele. E a
luta dele durante a história é para desconstruir essa imagem que as pessoas têm
sobre ele.” (op. Cit.)
Um
conflito interior, conclui eu. A breve leitura da sinopse do livro deixou-me a
querer explorá-lo mais. Talvez seja uma característica predominante minha, mas
como já deve ter transparecido até aqui, temas psicológicos e de autorrevelação
sempre foram grande parte das minhas paixões. Passaram vários dias, uma semana,
duas, três. Tentava acabar a leitura enquanto fazia trabalhos e dava os últimos
retoques nas apresentações finais de várias disciplinas. Assim que o acabei,
fechei a aplicação do iBooks e sentei-me em cima da minha cama. Divaguei um
pouco. Enquanto olhava fixamente para a parede perdi o foco da imagem que via,
e acho que fiquei em estado de choque, por alguns segundos. Tal como o autor
inferira, através da observação das suas próprias falhas físicas (que depois o levaram
a realizar uma profunda análise própria através de uma auto-observação a partir
de alguém de fora, em sua segunda experiência.) ninguém conhece o nosso
verdadeiro “eu”, nem nós próprios. Ele desconstrói cada juízo de valor que as outras
pessoas têm em relação a si, começando por traços físicos. Continua a
investigar as maneiras com que ele é percebido por outras pessoas e descobre
que abomina as identidades que vivem dentro de si.
A parte mais interessante, na
minha opinião, é o facto do nosso próprio “ser” ser retratado como algo que
apenas nós verdadeiramente conhecemos, e nem tanto assim. Cada pessoa que
conheces, tens uma relação ou fazes contacto visual com a passar na rua, cria
uma versão do “tu” dentro das suas mentes. Tu não és a mesma pessoa para a tua
mãe, o teu pai, os teus irmãos da mesma forma que és para os teus colegas, os
teus vizinhos ou os teus amigos. Existem milhares de versões diferentes de ti
caminhado por aí, nas mentes das pessoas. Um “tu” existe em cada versão, mas
ainda assim o teu “tu” não é ninguém no final de contas. É apenas uma projeção,
um holograma mental, um conjunto de perceções individuais que diferem e te
moldam até atingires o teu “eu” de cada pessoa. É confuso, não é? No fundo,
gosto de pensar na vida como um jogo. Já jogaram Sims? Eu adorava, quando era
criança. Agora imaginem-se como a personagem principal. Vivemos a nossa vida,
fazemos as nossas escolhas e temos ideias, opiniões sobre os que nos rodeiam e,
que, de alguma forma, representam o papel de “figurantes” na nossa vida. Agora
mudemos de perspetiva. Imagina agora um dos teus colegas, de turma, de
trabalho, um vizinho, um próprio parente. Eles fazem exatamente o mesmo, na 1ª
pessoa. São o seu próprio protagonista, a “figurinha do vídeo-jogo” que
perceciona as coisas tal como nós, mas desta vez, fazem de nós os seus
figurantes.
Ao pensar nas coisas assim,
apercebi-me de que nós não nos conhecemos uns aos outros assim tão bem quanto
podemos imaginar. Sim, tudo bem. Podemos ter um melhor amigo ao qual contamos
tudo e o qual conhece literalmente toda a nossa história (ou vivência) factual,
e vice-versa. Mas quantos de nós conhecemos os sentimentos, ou os pensamentos
das outras pessoas na sua forma mais íntegra e genuína, no momento em que acontecem
em bruto, como uma fogueira intensa e vívida? Extremamente falando, nenhum de
nós. Bem, a menos que eu desconheça a existência de alguma pessoa omnipresente
e omnisciente. Por agora este é o meu juízo.
Ninguém conhece ninguém, o seu verdadeiro
“eu”. Talvez essa seja mais uma das imensas falhas do ser humano, a falta de
compaixão. Por essa razão, muitas vezes falhamos quando é necessário
colocarmo-nos na posição de outrem, ou quando é necessário conter certas
palavras ditas com fúria num momento agitado que poderão, com diversas
intensidades, machucar o outro. Tudo isto veio-me “ao de cima” quando me
apercebi de que estou inserida, na maior parte das vezes, em ambientes
extremamente tóxicos. Verdadeiras lixeiras sociais, até. Muitos de nós estamos
e, simplesmente, deixamo-lo passar como se nada fosse porque fomos educados de
forma a percecionar isso como algo normal. “It’s a doggy dog world out there”
(É um mundo de cães). Eu tento abstrair-me disso. Por vezes isso implica entrar
em contradição com certos pensamentos e ideias com as quais antes concordava,
como maior parte das pessoas à minha volta. E isso cria distância. Cria
advertências e conflitos, afastamentos e dicotomias de ideais. Vejo-me a
afastar cada vez mais de ideias que antes tomava como “garantidas” e tento
julgar por mim mesma. Com senso comum, suficiente espírito crítico, e densidade
intelectual, qualquer um de nós se pode tornar o seu próprio “eu”. Com isso tudo
quero apenas dizer que é quase uma obrigação moral nossa “desfocar” a nossa
visão da rotina e observar, minuciosamente, os fenómenos que ocorrem por entre
as escolas, os locais de trabalho, os edifícios públicos ou até as casas de
cada um. Depois, avaliá-los à luz de princípios e convicções que visem garantir
o melhor possível bem estar ao maior número de pessoas que estão envolvidas e
dependentes destas ações. Encontrar um “eu” dentro de cada “tu” e sentir, de
verdade, o outro. Luto por, e acredito neste “eu”.
O “eu” que desafia os limites e atreve-se
a tentar entender os outros, ao mesmo tempo descobrindo-se a si.
Texto de Valéria Tabacaru – 11ºC
Coordenação e revisão de texto – prof. Fernando Ildefonso
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